Essa semana, tive um sonho inusitado. Por algum motivo desconhecido, ele começou na Praça Domingos Silvério, onde tinha (não sei se ainda tem) o famoso Ponto Fiscal da Enscon. A praça não estava como está hoje. Era um grande aglomerado de pessoas e carros subindo e descendo as avenidas Getúlio Vargas e Wilson Alvarenga. Chamou-me a atenção os sinais de trânsito em frente ao Hotel Central Palace. A avenida Gentil Bicalho não existia. Olhei um pouco mais ao meu redor procurando entender o que acontecia. É que eu tinha tido a oportunidade de voltar algumas décadas na minha vida. O mais curioso é que, neste sonho, eu estava com minha aparência de meia idade de agora: adulto e me lembrava de tudo. Era como se a vida me dessa a chance de voltar ao passado para rever situações, pessoas e locais que não existem mais.
Comecei a descer a Wilson Alvarenga e fui encontrando com rostos conhecidos da cidade. Meus amigos, atualmente adultos, eram crianças. Os idosos de hoje, adultos vigorosos. Fui até a praça do Lindinho e lá vi um grupo de jovens reunidos. Eram os meus amigos do Centro Educacional. Eles costumavam se reunir lá quando as aulas terminavam mais cedo. Cheguei perto e ouvi uma conversa angustiante sobre o futuro: “será que as coisas dariam certo?”, perguntavam uns aos outros. Dei um sorriso e tentei chegar perto para avisar que sim. Um deles se tornaria um renomado engenheiro. A outra, uma psicóloga de sucesso. Outros três seriam professores de universidades públicas no Nordeste, de Minas e do Rio de Janeiro. Eles me olharam incrédulos, questionando com o olhar: “quem seria esse doido, metido a vidente falando com tanta precisão sobre nossas vidas?”.
Saí dali e continuei a caminhada. Um jovem parou sua bicicleta ao meu lado e perguntou as horas. Reconheci imediatamente aquela criança, que estudou comigo desde os tempos de Rúmia Maluf. “São onze e meia”, respondi. Ele disse: “preciso correr para casa. Minha mãe ficará brava se eu atrasar pro almoço”. Saiu sem se despedir me deixando trêmulo. É que aquele menino morreria num acidente de trânsito na BR-381 uma década depois. Minha vontade era sair correndo e avisar: “Ei garoto, aproveite bem sua breve vida”. Mas não deu tempo.
Continuei a caminhar até o Centro Educacional. Parei sobre aquela escola verde e branca com tijolos laranja. A aula da manhã tinha acabado de acabar. Vi crianças correndo, brincando de pique. Entre elas, um professor olhava pensativo para o nada. Meu coração apertou ao rever aquela expressão cansada, que nunca tinha percebido durante o tempo em que havia sido aluno dele. O inconfundível cigarro estava em suas mãos. O amarelo da nicotina ressaltava em seus bigodes brancos. Perguntei a ele se estava tudo bem. Ele respondeu que sim. Mas eu sabia que não. É que aquele professor talentoso, que me ensinou leis e fenômenos dos quais jamais esqueci, sucumbiria ao vício do álcool e se mataria alguns anos mais tarde. Uma pena. Fiquei aflito tentando encontrar uma forma de salvá-lo. Mas eu não poderia mudar o passado.
Atravessei a avenida correndo antes que o sinal de trânsito abrisse. É que avistei vindo ao longe o ônibus da linha 22. Seria minha chance de voltar ao Satélite, bairro onde cresci. Pouco antes de entrar no ônibus, chamou-me a atenção uma Brasília vermelha que vinha bem devagar. Era meu saudoso vô. Minha saudosa vó, ao lado. Ela me olhou com aqueles olhos verdes inconfundíveis. Acenou um tchau e um belo sorriso. Chorei de saudade. Dentro do ônibus, mais saudade. Muita gente que já não estava mais entre nós. Todos sorrindo e conversando, carregando sacolas de compras. A meninada fazia a tradicional bagunça do fundão. Desci um ponto antes para rever o campo de terra vermelha onde ocorriam não só as partidas de futebol, mas também quermesses e quadrilhas. Pelo horário, o campo estava vazio, mas eu estava cheio das lembranças.
Dei a volta para ver Monlevade do alto. A cidade crescia, mas não tinha muitos prédios. O Areão ainda muito degradado era apenas rocha e argila rosa. O vento que batia em meu rosto trazia o aroma dos tempos de outrora. Decidi entrar na rua Fortaleza. O banquinho onde os papos ocorriam ainda estava ali na porta da casa de Creuza. Nos muros, ainda estavam os ferros que usávamos como suporte para colocar uma corda de varal que usávamos como rede para as partidas de vôlei e de peteca. Os quintais estavam inundados de árvores com frutas que amávamos compartilhar.
Mais uns passos à frente, eis que chego à humilde casa onde cresci. Ainda de poucos cômodos e não tão grande quanto agora. Do portão, revi Lesse, minha vira latas caramelo, meu primeiro grande amor animal. Também pude ver minha mãe com uma toca na cabeça. Ela ouvia a Rádio Globo e cantava alguns sucessos populares. Na garagem, o Chevette marrom caramelo do meu pai. Acho que ele não estava ali. Deveria estar trabalhando fora da cidade. Virando a esquina, vinham três crianças. Saltitantes. Sujas de terra vermelha. Verdadeiros pés de pomba, como diria meu tio Edmar. Eram eu e meus dois irmãos. Minha mãe na porta nos manda entrar para tomar café. Na mesa, pão com manteiga e um mimo: ovo com farinha de mandioca temperados com caldo Knorr. Para beber, um copo de chá mate quentinho. Depois, ver TV. Acordei sem ter a oportunidade de conversar comigo mesmo. Enxuguei as lágrimas e fiz uma oração para agradecer a Deus. Tive uma infância muito feliz.
(*) Breno Eustáquio da Silva é professor universitário