Desde 1984
Márcio Passos
25 de Março de 2022
Carta aos netos

Tenho 71 anos e não devo viver mais de dez. Nenhum achismo, teatro ou vitimização. Acho até que já estou no lucro. Fumei trinta anos, saboreio álcool, sou um atleta sempre ausente, diabético, hipertenso, trabalhando há mais de meio século com comunicação e política, além de várias cirurgias e um vírus que me levou à porta do céu. Só não entrei porque Deus me mandou de volta com medo deu fazer política lá em cima. Viver mais de oitenta anos seria uma anomalia na humanidade. A hora que a morte chegar vou numa boa, apesar de contra minha vontade. Não quero velório longo e nem enterro, mas cremação com as cinzas jogadas no rio Santa Bárbara, no que eu considero divisa de Monlevade e Itabira. Uma cachaça honesta e/ou uma cerveja premium marcariam bem o momento, mas aí já são decisões e problemas dos vivos e não meus.

Aprendi tarde, mas a tempo, que sabedoria é morrer melhor do que quando nasceu. Melhor como pessoa, melhor como cidadão, como amigo, como companheiro, como filho e como pai e avô. Tem gente que nasce pobre e morre rico de bens materiais, mas continua pobre como pessoa. Desejando o mal, fazendo o mal, odiando as pessoas, torcendo pelo insucesso e infelicidade dos outros, reduzindo o valor da vida aos poucos metros de sua convivência familiar. Outros morrem remediados financeiramente e sábios pelo aprendizado que a vida ensina e muitos não entendem. Me considero um homem como qualquer outro, com virtudes e defeitos. Melhorei muito e sei que ninguém alcança a perfeição. Tenho consciência de que serei esquecido pela maioria, o que também é absolutamente normal. Quero, no entanto, que as poucas pessoas que lembrarem o façam pelo de bom que consegui fazer ou ser.

Passo dos setenta muito feliz, em paz com a vida e até mesmo com a aproximação da morte. Não desejo mais bens materiais e nem preciso. Quero bons relacionamentos, tolerância, coração batendo e alma lavada, entendendo a naturalidade das diferenças e impressionado com a insignificância de cada um de nós diante do universo. Trabalhei exageradamente a vida toda com carga horária acima de todas as médias e li duas horas por dia toda minha vida madura para compensar minha ausência dos bancos escolares.

Nietzsche disse que a sabedoria é um paradoxo porque o homem que mais sabe é aquele que mais reconhece a vastidão da sua ignorância, enquanto Clarice Lispector afirmou que perdeu muito tempo até aprender que não se guarda as palavras, ou você as fala, as escreve, ou elas te sufocam. Um dia a gente aprende que nada é meu, seu ou nosso. Tudo é emprestado. Porque a única certeza que se tem, é que um dia, mais cedo ou mais tarde, a vida ou a morte vem e nos tira tudo de volta.

No somar das diferenças talvez a razão esteja com Érico Veríssimo, quando ele escreveu que felicidade é e certeza de que nossa vida não está passando inutilmente. Obrigado, vida! Beijão meus netos Leo, Alice e Melissa.


(*) Márcio Passos é jornalista e fundador do A Notícia 

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