Desde 1984
Elias Lourenço
20 de Janeiro de 2023
Madrugada Anônima

De madrugada os bêbados voltam para casa trocando as pernas, chorando pelos amores perdidos, os cães latem desvairados, mas eles o veem como amigos. De madrugada, os mendigos morrem de frio, outros se aquecem com vários goles de álcool e cigarros, para afugentar a solidão. Pura ilusão...
De madrugada, uma mulher amargurada espera a volta do marido que ela não sabe aonde anda. Na mesma rua, outra mulher carente de amores trai um indivíduo que não a ama. De madrugada, em outro bairro não muito longe, a mãe ajoelhada reza pelo filho ou filha que não chega da rua numa longa espera. O tic...tac...do relógio de parede parece apunhalar seu coração aflito. Oh meu Deus! Protegei as mulheres a esmo no romper da madrugada.
É de madrugada que fantasmas de outrora visitam a mente de alguém que se revira na cama, porque o sono não vem. Ainda mais que chove. E a chuva bate na vidraça trazendo à tona, pensamentos intranquilos. Boletos a pagar, a dor de um amor machucado, a saudade de alguém que se foi dessa vida. As mazelas do dia que retumbam nas paredes do quarto. De madrugada, a mente voa, mas o corpo quer dormir e não consegue, embora necessite.
De madrugada a descarga no andar de cima anuncia que há gente acordada. O filme que passa no andar térreo não diz nada. Um rosto na janela ao lado espreita a rua. Ainda chove lá fora e o apartamento antigo, com seus móveis igualmente antigos, trazem a memória do passado. Sobre a velha cristaleira, a foto dos pais recém-casados. A vida inteira pela frente, o olhar de esperança e o sorriso de afetos para a posteridade. Depois, os filhos, os netos... Quantas madrugadas passaram juntos, na alegria e na tristeza? Eu penso naquele tempo deles, de olhos nos olhos e mãos salientes, repreendidas por um tapa sutil da dama ainda pura. 
De repente, um galo canta distante, imponente, anunciando o romper da aurora. A manhã se anuncia e o dia vem, inevitável como a morte. Desconstruo a impressão de que nada acontece de madrugada: a vida não para e é tão rara, feito na canção de Lenine. Que beleza, que honra, percebê-la, contemplá-la, vê-la parir o dia sem agonia. Mais um dia chega com diversas possibilidades. Sua roupagem mais criativa? Na minha modesta opinião: o acaso, que traz com ele, os melhores momentos da existência. Vamos viver e romper as madrugadas. 

 

(*)  Elias Lourenço é monlevadense e funcionário público

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