De madrugada os bêbados voltam para casa trocando as pernas, chorando pelos amores perdidos, os cães latem desvairados, mas eles o veem como amigos. De madrugada, os mendigos morrem de frio, outros se aquecem com vários goles de álcool e cigarros, para afugentar a solidão. Pura ilusão...
De madrugada, uma mulher amargurada espera a volta do marido que ela não sabe aonde anda. Na mesma rua, outra mulher carente de amores trai um indivíduo que não a ama. De madrugada, em outro bairro não muito longe, a mãe ajoelhada reza pelo filho ou filha que não chega da rua numa longa espera. O tic...tac...do relógio de parede parece apunhalar seu coração aflito. Oh meu Deus! Protegei as mulheres a esmo no romper da madrugada.
É de madrugada que fantasmas de outrora visitam a mente de alguém que se revira na cama, porque o sono não vem. Ainda mais que chove. E a chuva bate na vidraça trazendo à tona, pensamentos intranquilos. Boletos a pagar, a dor de um amor machucado, a saudade de alguém que se foi dessa vida. As mazelas do dia que retumbam nas paredes do quarto. De madrugada, a mente voa, mas o corpo quer dormir e não consegue, embora necessite.
De madrugada a descarga no andar de cima anuncia que há gente acordada. O filme que passa no andar térreo não diz nada. Um rosto na janela ao lado espreita a rua. Ainda chove lá fora e o apartamento antigo, com seus móveis igualmente antigos, trazem a memória do passado. Sobre a velha cristaleira, a foto dos pais recém-casados. A vida inteira pela frente, o olhar de esperança e o sorriso de afetos para a posteridade. Depois, os filhos, os netos... Quantas madrugadas passaram juntos, na alegria e na tristeza? Eu penso naquele tempo deles, de olhos nos olhos e mãos salientes, repreendidas por um tapa sutil da dama ainda pura.
De repente, um galo canta distante, imponente, anunciando o romper da aurora. A manhã se anuncia e o dia vem, inevitável como a morte. Desconstruo a impressão de que nada acontece de madrugada: a vida não para e é tão rara, feito na canção de Lenine. Que beleza, que honra, percebê-la, contemplá-la, vê-la parir o dia sem agonia. Mais um dia chega com diversas possibilidades. Sua roupagem mais criativa? Na minha modesta opinião: o acaso, que traz com ele, os melhores momentos da existência. Vamos viver e romper as madrugadas.
(*) Elias Lourenço é monlevadense e funcionário público