Tão perene quanto o amor verdadeiro, ou a luz que do sol emana, a sequela de poliomielite acompanhará a pessoa até seu último dia de vida.
Era um início de noite. Outono ao sul do equador, e primavera no âmago da alma. Dois jovens com os hormônios em polvorosa, um intenso brilho no olhar e um arrebatamento de paixões. Ela, belíssima, loura, talentosa, sorriso divino, trainee no fantástico Coral Ars Nova de Belo Horizonte. Ele também jovem, olhos de um verde-escuro atento e firme, a voz muito grave, arguto, apaixonado e PcD.
Ao final do ensaio, se encontram, e percorrem a alameda à esquerda do Palácio das Artes, separada da avenida Alfredo Balena por uma faixa de terra em desnível ascendente, em que vários eucaliptos e ipês se desfolhavam pelo chão. Ela, sonhadora, imagina a cena em que os dois, enamorados, vêm um ao encontro do outro e se abraçam, sob a grande lua, muito branca, num giro fagueiro e emocionante. A seu turno, ele sorri, projeta mentalmente a cena e avalia que o resultado seria um tombo de ambos naquela pequena escarpa enfeitada de belas folhas secas...
A poliomielite frustrou, infelizmente, diversos sonhos e projetos, não só para o paciente como, também, para as pessoas próximas. As PcD, especialmente, no início da vida, demandam atenção e cuidados específicos que, muitas vezes, exigem a adaptação de agendas de terceiros, de espaços e de sonhos.
O relato acima é real, não o fruto de uma conjectura poética. A vida com deficiência passa por caminhos muito estreitos e instáveis e relega esse recorte social, PcD, a sobreviver, em contraste com o simples fruir a própria existência.
Imunizar crianças contra males fatais ou incapacitantes é uma forma inteligente de demonstrar-lhes amor e responsabilidade. Também, por elisão do viés emocional, pode-se pensar nessa proteção com um olhar materialista e eminentemente financeiro, considerando-se que a vacina é gratuita, consome um mínimo tempo do tutor e protege por toda a vida. Por outro lado, a sequela também é inexaurível, muito onerosa em termos de gastos médicos, de tempo e serviços; de demanda por órteses ou próteses, adaptações de espaços e posturas.
Se alguém prefere não se empenhar pela vacina como forma de demonstrar amor por seus filhos ou tutelados, que o faça com um enfoque racional, apenas por questão de economia, pois o custo para se manter uma PcD se amplia com as demandas específicas, necessárias para auferir qualidade de vida minimamente decente, além das demandas comuns a todas as pessoas.
Outras tantas histórias, com enfoque na superação de adversidades, de resgate social, de humanitário bem-querer permeiam a vida de muitas pessoas PcD ou não. No entanto, sob a ótica adversa da segregação, humilhação, descrédito, ignomínias, posturas eivadas de preconceito e de desamor, muitas vezes acompanham pari passu cada momento dos dias de uma PcD. No caso específico das sequelas de Poliomielite e das paralisias dela decorrente, a imunização simples e segura é capaz de evitar a triste deficiência e suas dolorosas consequências sociais.
Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias