“A carne mais barata do mercado é a carne negra. Só cego não vê.” Embora cerca de 56% da população brasileira seja formada por pretos e pardos, a sociedade em geral insiste em não reconhecer a importância do povo negro para a construção e constituição da identidade nacional. E uma das formas de tapar o sol com a peneira, é negar ou relativizar o 20 de novembro, Dia de Zumbi dos Palmares, grande líder na luta contra a escravidão e também Dia da Consciência Negra.
Há quem fale de “consciência humana” e quem defenda a “igualdade entre todos”. Isso não passa de discurso para silenciar, subjugar e apagar a importância de quem tanto fez por esse país e que ainda faz.
Não é preciso ir aos grandes centros para perceber. Basta dar uma volta pelo seu bairro, com olhar mais atento e você vai perceber. Quanto mais alta a classe social, menos preto é o tom da pele. E quanto mais baixa, menos branco também. Questão de oportunidades que não são iguais para todos. Se olhar para a população de rua, perceberá que ela tem cor: preta. Para os hospitais psiquiátricos, para as cadeias. A cor predominante é preta. Se olhar nos restaurantes, veja a cor de quem está sentado à mesa e a de quem está servindo ou limpando o chão... As divisões são muito evidentes.
É estranho que muitos dos que criticam cotas para negros em universidades, concursos públicos ou em qualquer outro segmento, por exemplo, sejam os mesmos que se calam diante dos imigrantes que ganharam terras para recomeçar a vida no Brasil, após guerras, fomes e misérias na Europa. E isso também não foi uma espécie de cota?
Além disso, se olharmos estatísticas nacionais, a questão racial no Brasil mostra o resultado nefasto dos quase 400 anos de escravidão. Quem mais morre neste país é gente preta. A população negra é vítima de 78% das mortes violentas, categoria que inclui homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial.
Outra pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança, chamada de 'Pele Alvo: a bala não erra o negro', aponta que, a cada quatro horas, uma pessoa preta foi morta pela Polícia em 2022. Os dados foram obtidos junto a secretarias estaduais de segurança pública da Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Os números podem ainda ser maiores.
João Monlevade é uma cidade erguida pela “labuta, não importa o cansaço, pois a meta é crescer, construir”, como nos diz o hino municipal. Mas quem é que labutava? E quem se cansava? Os escravizados na Fazenda de Monlevade e, posteriormente, os operários da Fábrica que Louis Ensch construiu. Mas quem é que teve o nome gravado na história? O Cemitério Histórico, mal chamado “Cemitério dos Escravos”, por anos, pode ter corpos negros ali sepultados. Mas não há nomes e nem identificação de suas campas... Por mais nobre que fosse mandar sepultar os escravizados e depois pedir para ser sepultados com eles, Jean Monlevade negou-lhes o direito à identificação. A história se repete em inúmeras fazendas de cidades brasileiras.
Nesta semana, os vereadores derrotaram um projeto substitutivo que impediria um feriado municipal no dia 20 de novembro em João Monlevade. Ainda bem que a proposta não passou. O original, de Doró da Saúde (PSD), é que a data fosse feriado municipal a exemplo e outras cidades brasileiras.
Escrevi aqui ser contra feriado vazio, sem ações e mobilizações. Defendo sim, ser importante alinhar esse dia a várias ações, passeatas, eventos, rodas de conversas e reflexões. Isso não é favor, é reparação histórica. O texto repercutiu muito e, após a publicação e durante votação da proposta de Doró, o vereador Belmar Diniz (PT) informou que irá propor junto com o autor, a atualização de lei já existente, proposta pelo ex-prefeito Germin Loureiro em 1995, garantindo que as atividades sejam realmente realizadas nessa data. O presidente da Casa, Fernando Linhares, e a maioria dos vereadores aprovaram a matéria original.
Por sua vez, os vereadores Marquinho Dornelas (PDT) e Gustavo Maciel (Podemos) apresentaram a proposta de, em vez de feriado, deixar o Dia de Zumbi dos Palmares ser apenas um ponto facultativo. Dornelas defendeu o substitutivo e citou que entidades como a CDL e a Acimon apresentaram resposta contrária ao feriado ou no mínimo a favor do ponto facultativo. Em seu discurso, Marquinho se disse preocupado com as implicações que o feriado poderia ocasionar no setor público como creches, posto de saúde, farmácia municipal, entre outros, que ficariam um dia a mais fechado...
Mas fica uma provocação: será que ele, como empregador que é, dispensaria os funcionários para que eles aproveitassem esse dia? Essa é a lógica: parecer ser legal ao deixar o ponto facultativo, mas sem dar folga a ninguém. Praticamente, eu finjo que sou bonzinho porque deixei o dia ser facultativo a empresários e ao município e o trabalhador, em sua maioria negro, finge que acredita que será liberado.
Com a derrubada da proposta por acachapantes 10x2 (apenas os autores do substitutivo votaram a favor), só falta o prefeito Laércio assinar e o dia 20 de novembro será feriado municipal. Já a partir do ano que vem. Uma vitória para o povo negro que se organizou, por meio da Associação Monlevadense de Afrodescendentes (Amad) e outras lideranças, para debater e expor o assunto.
A data é muito significativa e importante. Até porque, é muito fácil falar que defende igualdade, humanidade e consciência humana, mas negar essa reparação quando se tem privilégios. É alienação ignorar quem morre e quem mata. Quem apanha e quem tem a chibata. E que o 20 de novembro, Dia de Zumbi dos Palmares em Monlevade, cidade erguida com sangue preto, seja feriado com ações e reflexões. Reforçando, nesta semana, a medida foi também aprovada na Câmara Federal e pode tornar a data, feriado nacional, além de em apenas 1200 cidades e em seis estados.
A história é feita todos os dias. E a luta é contínua para o povo negro. Todo dia, toda hora, o tempo todo. A aprovação desse feriado municipal é um capítulo que precisava ser escrito. É preciso parar de matar as pessoas (sobretudo negras), sua história e sua memória. Chega de morte física, morte matada e morte de esquecimento e normalização das desigualdades. E que agora, a voz da liberdade (que não veio do céu, nem das mãos de Isabel), seja, enfim, ouvida e que o canto do negro não seja só o soluçar de dor.
(*) Erivelton Braz é editor do A Notícia e fundador da Rotha Assessoria em Comunicação