Desde 1984
Mário Ananias
08 de Dezembro de 2023
Sobre bem e mal (Parte 2)

Barreiras arquitetônicas, logísticas, orçamentárias e, sem dúvidas, anatômicas, imprimem uma sensação de impotência frente a determinados desafios. Por isso, avalio que, hoje, é inconcebível alguém ainda se bater contra a imunização de crianças, expondo-as ao risco da pólio.
Valho-me aqui do texto do genial Lupicínio Rodrigues, contexto diferente, mas perfeitamente enquadrado: “Esses moços, pobres moços; ah se soubessem o que eu sei. Não amavam, não passavam aquilo o que eu já passei”. Ser deficiente, sabemos, sendo possível evitar, gera um trauma bem maior. 
Após 45 minutos de longa espera ao sol, o ônibus apareceu. Nada estava resolvido. Subir com todo aquele peso, quatro degraus estreitos, mais altos pelo desnível da rua, ao lado do motor e mesmo para quem não tem deficiência motora, complica. 
O primeiro assento tinha um espaço sob um vidro separando motorista e passageiros. Coloquei ali o estorvo e logo entrou um idoso, sentou-se à janela, à minha esquerda. Duas paradas à frente entrou uma bonita senhora, muito cuidada, que se postou de pé ao meu lado e eu podia vê-la pelo retrovisor interno me olhando de cima com expressão indignada. 
Minha deficiência, quando sentado, não é tão aparente. O aparelho ortopédico, fica semioculto pelas calças. Tenho tronco robusto, fruto de anos substituindo funções das pernas por ações de braços consistentes. A mão esquerda, reimplantada após amputação traumática por serra circular, posta ao colo, não denota a severa redução de sua funcionalidade.
Aquela conservada senhora, impaciente com a minha ‘distração’, enfim se manifesta:
- O senhor (deve ter sido uma deferência à barba que sempre usei) não está me vendo aqui, não? 
Sim, eu estava. E até, confesso, quando entrou, admirei sua elegância, o vestido com motivos florais, as sandálias de tiras finas e coloridas, combinando com a bolsa. A pergunta me pareceu retórica, mas meu cansaço cedeu espaço à ironia, que não recomendo nem pretendo repetir. 
- Oh! Sim. Eu vi a senhora. Boa tarde. Como vai?
- O senhor não viu que esse lugar é reservado?
Como não ver? Havia uma placa azul, de 30 por 15 centímetros, caracteres brancos, bem legíveis e desenhos indicativos. Seria quase impossível não ver.
- Vi sim, senhora...
- Não sabe que o direito é meu? O senhor não vai me ceder o lugar?
Isso eu, sinceramente, não sabia: que o lugar era dela. E aquela vontade, bem no fundo, de ser mau, aflorou em mim.
- Tá. Eu vou me levantar. Mas a senhora promete que não fala mais comigo?
- É claro. Eu nem deveria estar falando mesmo com o senhor.
Ótimo. Deu certo. Fiz um esforço só um pouquinho maior do que o necessário para me levantar; travei a articulação do joelho com um nadicadenada a mais de estrépito para ficar de pé. Enquanto a graciosa senhora arregalava os olhos, enrubescia e gaguejava:
- O senhor me desculpe, eu não vi que...
Com um olhar sério, voz grave, mão espalmada, interrompendo como a pedir a palavra, retruquei:
- A senhora prometeu que não iria falar mais nada comigo, se lembra?
Ela se sentou visivelmente incomodada como num formigueiro, sem conseguir fixar o olhar em um ponto qualquer, nem manter as mãos longe do rosto, como se insetos vagassem pela pele. 
Ainda bem que a viagem foi curta. Pobre senhora. Será que ela ainda se lembra do episódio? Tomara que não. 

 

(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias

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