Desde 1984
Mário Ananias
15 de Dezembro de 2023
Sobre bem e mal (Parte 3)

Os dias raramente eram simples no transporte público. O bom empreendedor propõe que se desenvolvam, produzam ou disponibilizem produtos para que o consumidor os avalie e os utilize, na expectativa de que a demanda cresça e, com isso, justifique e remunere o investimento. Por outro lado, a Administração Pública comum, trabalha e atua alguns passos atrás, como na percepção popular: “apagando incêndio”. 
Por exemplo, ao invés de ofertar um transporte em quantidade e qualidade que reduzam a necessidade do veículo individual, melhorando assim a qualidade do espaço público, minimizando a emissão de gases e disponibilizando para outras atividades os grandes espaços ocupados por estacionamentos, o governo se empenha de forma tímida e intempestiva a atender partes das demandas reprimidas e ainda assim, muitas vezes, só o fazem sob pressão popular ou da mídia.
Aquela quinta-feira, transcorria com os mesmos transtornos de sempre, o mesmo desgaste aos passageiros e operadores daquela linha de ônibus, como tantas outras, do Alto Vera Cruz ao Padre Eustáquio. Vale aqui resgatar que o “capacitismo”, neologismo utilizado para se referenciar a um preconceito antigo, muitas vezes, surge em momentos absolutamente comuns, do dia-a-dia, como naquela oportunidade.
Entrei no ônibus bem no centro da cidade, no primeiro ponto da Avenida Amazonas. E isso foi bom, porque ali desciam vários passageiros que vinham do lado leste da cidade para o centro, portanto, muitos assentos vazios. Dali em diante entrariam aqueles que, como eu, iriam para noroeste. Sentei-me no segundo banco, adiante do cobrador e, frente às minhas reduzidas expectativas de bem-estar e sucesso, estar sentado naquele momento já era uma bela conquista.
Na parada do Mercado Novo, na Tupis, todos os assentos já estavam ocupados e também já haviam várias pessoas de pé, se equilibrando a custo, nas curvas, nas frenagens e nos solavancos que os muitos danos na pista proporcionavam. Para mim, com pernas frágeis devido à sequela de poliomielite, estar de pé seria uma façanha heroica. No entanto, como de hábito, sempre que percebia algum passageiro portanto bagagem, eu me dispunha a levá-la ao colo. Não foi diferente naquele dia. Um senhor postou-se ao meu lado e, mesmo sem identificá-lo, me dispus a levar sua “maleta 007”. Recebi a pasta e, então, ouvi dele:
- “Você devia era me ceder o lugar. Trabalhei o dia inteiro e eu vi que você entrou pela frente, sem pagar. E eu paguei passagem.”
Imediatamente identifiquei, pela voz, o meu amigo. Era uma brincadeira. Antes que a situação fosse esclarecida, foi possível ouvir alguns comentários de passageiros próximos que também o ouviram.
- “Se fosse eu, jogava essa m... de mala pela janela!”
- “Ôh! Cê num tá vendo que ele é aleijado, não? Sem educação!”
- “Ninguém respeita mais nada! Eu jogava essa porcaria (a maleta) longe!”
Hoje, quase quarenta anos depois, resgato da memória esse episódio e divago em avaliar tantas posturas, pontos de vista e sentimentos que uma cena simples suscita. E se as verbas públicas fossem utilizadas de forma preventiva e não apenas corretiva?

 

(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias

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