Meus irmãos mais velhos foram dispensados do serviço militar. Éramos oriundos da cidade industrial de João Monlevade, e isso fazia diferença, pois a maioria dos jovens estudava no Senai ou trabalhava na companhia siderúrgica. Portanto, havia menos chances de recrutamento.
Entre meus contemporâneos, os que atingiam a maioridade, havia muitos discursos contrários à convocação. Poucos favoráveis ou neutros. Na ETFMG, em que eu era calouro, observava-se o posicionamento maciço dos veteranos contrários ao serviço militar. Talvez por avaliar que o alistamento seria, necessariamente, um apoio ao governo militar que se instalara desde 1964. E estávamos em 1975.
A minha posição, influenciada pela maioria, também era avessa à possibilidade de convocação. Nas rodas de conversa, quando o tema era abordado, havia até análise de estratégias para lograr a dispensa. Alguns diziam conhecer alguém influente, outros diriam ser arrimos de família, entre outras razões que supostamente lhes ensejaria a dispensa. Alguns argumentos eram tão absurdamente implausíveis que, passado tanto tempo, lembro-me deles e me causam risos. Como um que assumiria uma postura homossexual. Talvez, naquele tempo funcionasse, mas hoje, parece apenas risível.
Eu não estava convicto de que seria dispensado. Afinal, meus braços poderosos e ombros largos me pareciam um atrativo para atender às demandas do Exército. Infantil engano, claro. A sequela de poliomielite, adquirida desde minha primeira infância, de per si, já me tornava inapto. Talvez muitos, quase todos na verdade, soubessem do fato, mas, suponho, avaliaram ser melhor eu descobrir por mim mesmo.
Até me apropriei de um estratagema ‘genial’: me apresentar ao final da tarde no último dia. Assim, talvez o contingente esperado já tivesse sido suprido e então, (sucesso!), a dispensa viria.
Éramos muitos ali naquele pátio largo e os militares, fardados, quase todos muito jovens, davam gritos de comando para que nos organizássemos numa fila deste ou daquele lado; que mantivéssemos os documentos à mão: identidade ou certidão de nascimento, comprovantes de endereço e de pagamento da taxa, e a famosa foto 3 por 4 (quase todas numa capinha plástica do Foto Jaks, da Rua Tamoios).
Entre tantos jovens, infelizmente, havia muitos que eram totalmente ou semianalfabetos, e aquelas instruções, bastante simples, pareciam altamente complexas para muitos deles. Eu achava engraçado, porque, para um recém-chegado do interior, era difícil imaginar que na Capital houvesse pessoas daquela idade ainda não alfabetizadas. Alguns de nós optamos por chegar naquele dia e horário, mas muitos tiveram como razão a dificuldade para identificar o ônibus e o local. Não havia, então, nem os celulares, nem os aplicativos de localização.
Um dos recrutadores, cansado de repetir as mesmas instruções reiteradas vezes para ouvidos moucos, exasperava-se:
- O endereço é o seu! Não é daqui, nem da sua tia, nem da sua avó, nem do seu conhecido! É o de onde você mora, seu b...!
Ou ainda:
- A foto é 3x4. E é da sua cara, seu b...! Não é da sua família, nem do cachorro, nem paisagem, seus m...!
Chegou a minha vez. Com uma expressão mista de cansaço, tristeza e piedade que ainda causa certo incômodo, quando penso a respeito, identificaram a cor dos meus cabelos, dos meus olhos e da minha pele; fui pesado, medido... e, enfim, dispensado!
(*) Mário Ananias é monlevadense, servidor público, escritor, palestrante e autor do livro: Sobre Viver com Pólio. Contato: mariosrananias.com.br/ @mariosrananias