Desde 1984
ROSANGELA MALUF
02 de Outubro de 2020
O travesseiro de Macela

São dez horas da manhã de um dia cinzento e nublado. Estamos no comecinho de abril... O Outono apenas começou e o friozinho da madrugada se esparrama ainda por estas montanhas. Acordei mais cedo, fiz a cama, ajeitei os lençóis, estendi a colcha de crochê e separei os travesseiros. De um deles, retirei a fronha branca, com barra de tira bordada e passa-fita de cetim. De dentro dela retiro, com cuidado, o meu antigo travesseiro de macela, aquelas flores pequeninas, amarelinhas, delicadas e perfumadas.

Antigo mesmo, me acompanha faz tempo, há mais de vinte anos. Ouviu muitos lamentos, secou muito choro. A ele me abracei em momentos de tristeza. Ou solidão. Juntos varamos noites e noites a dormir. Ou acordados, os dois. O travesseiro com as flores cheirosas, que me acalmavam e me faziam tanto bem, agora são restos apagados de uma vida inteira. Olho para aquelas flores secas e penso na impermanência das coisas, de tudo! As pessoas, os lugares, as fotos, os fatos, as canções, os sentimentos – tudo passa, nada permanece, nada. Respiro fundo e me sinto triste...só por causa do travesseiro? Claro que não.

Vou até o latão que fica no quintal e corto a ponta da fronha fazendo sair todo o recheio. Flores amarelas, já acinzentadas pelo tempo, mas ainda cheirosas; perfume que me embalou o sono e sonhos. Despejo no latão todas as flores desbotadas pelos anos; as lágrimas-de-nossa-senhora que eu apertava em momentos de aflição. Despejo também sacos de papel rasgado e jogo álcool. Risco o fósforo e fico olhando o fogo.

Rapidamente as chamas vão consumindo o que sobrou do travesseiro: flores secas, galhinhos e folhas igualmente mortas pelo tempo. Sem vida. Só restos. São poucas as chamas agora. Quase tudo já se foi. O fogo consumiu tudo. O tempo consome tudo também. Fica pouca coisa. Lembranças, cheiros, músicas, um detalhe ou outro.

Recolho a garrafa de álcool. Pego a caixa de fósforos. Volto para casa, mas antes entro no quarto de hóspedes. Pego um travesseiro novo, até então guardado para visitas. Afinal, vou precisar de outro. Subo para o meu quarto. A manhã permanece cinzenta. Ainda está frio. Recoloco a fronha. Me deito. Acho estranho, precisarei me acostumar. Recoloco a fronha. Aperto o novo travesseiro. Nenhum perfume. Aperto novamente e cheiro. Nada. Preciso mesmo me acostumar.

Deixo o travesseiro sobre a colcha de crochê. Seco uma lágrima teimosa que insiste em correr. Puxo as cortinas, fecho a porta e desço. Respiro fundo. Preciso de um café bem forte.


(*) Rosângela Maluf é monlevadense e escritora

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